terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Preferenciais

- Não, eu não admito que a senhora me olhe desse modo.
E não que isso agora importe... mas eu gosto mesmo de ficar em pé!
Quem sabe seja algum resto de desejo daquela menina-criança que queria tanto conseguir enxergar mais longe sem ter que machucar as pontas dos dedos.
Talvez alguma esperança da menina-atleta, sempre correndo de um lado para o outro, gastando uma energia que julgava infinita.
Ou ainda, quem sabe, seja apenas um velho hábito de uma menina-moça, que não se permitia ficar sentada enquanto havia tanta coisa a fazer no mundo!
Mas me vendo aqui, desse jeito, eu com minhas roupas justas e essa postura,
A senhora não diria assim... de eu já ter tantas frases no passado... não é mesmo?
Não, eu também não acho isso certo,... com a minha idade!
O que se pode fazer?
Até mesmo a senhora, que nem me conhece, acaba de me lançar aquele olhar!
Vê lá! Eu admito: eu não tenho filhos, nem netos, nem uma casa pra cuidar.
E também nem tenho asma, reumatismos ou algum tipo de artrite.
(O assento é seu, eu não vou contestar!).
Ainda assim, eu tenho essas frases no passado.
E hoje eu estava tão cansada que acabei me sentando.
Veja bem, eu podia me justificar com o fato de que eu não tenho um emprego, nem dinheiro, nem um carro, nem mesmo um namorado... mas eu vou continuar aqui em silêncio, imaginando que no fundo a senhora percebe que não é exatamente nada disso que tem nos deixado, a nós duas, assim, exaustas.
E por que é que a senhora continua fazendo essas caras?!
Sim... eu estou escutando música num volume alto!
É que eu tenho me esforçando bastante pra perder um pouco da audição.
Não, isso não é um pecado! Eu sei que a senhora gostaria muito de escutar como antigamente. Mas acredite. Tem tantas e tantas coisas hoje em dia que seria melhor se a gente não precisasse ouvir...
Tudo bem, eu abaixo um pouquinho. E quem sabe um dia eu até siga o conselho que eu sinto que você está me dando, ainda que eu não escute a sua voz e sua boca não esteja se mexendo para além das caretas.
É que, no fundo, a senhora também sabe que as músicas do seu tempo falam sobre as mesmas coisas do que esses caras que estão aqui gritando, só que com bem menos barulho, não é mesmo?
Olha só, a minha estação é a próxima.
Mas como a senhora já está sentada mesmo, eu vou lhe falar mais algumas surpresas antes de sair, pode ser?
...
É que eu não tenho apenas frases no passado.
...
Eu tenho também essa tristeza e esse cansaço que eu não sei de onde vêm.
Eu aprendi a disfarçar. A senhora também fazia isso quando tinha minha idade, lembra?
Mas é um mal-estar tão grande! E esses olhares como o seu não estão fazendo por ajudar...
E aí eu choro. Muito. Assim. Do nada.
(Talvez se eu me demorasse até o fim desta linha já seria o suficiente).
... Próxima estação: Santa Cruz. Desembarque pelo lado direito do trem.
Bem, não vai ser preciso... Mas já que eu lhe contei tanto, me deixe apenas dizer mais uma coisa.
É que eu também tenho muitos medos. Medo de não ser, de não saber, de ser e não saber, de amar, de não amar, de amar e não ser amada, de não tentar, de tentar sem saber e sem amar.
E eu não quero ser rude... mas eu tenho tanto medo de um dia, já com mais idade, me encontrar andando pelas ruas, assim, como a senhora. E que a tristeza, o cansaço e as frases no passado tenham, de repente, tomado conta de todo o meu corpo, transformando-se em muitas outras dores, como essa da sua coluna.
É que aí eu talvez veja uma menina sentada no assento cinza do metrô. E eu não quero olhá-la como se os meus suspiros fossem os únicos donos de toda a infelicidade do mundo.
Mas que petulância a minha, não é?
A senhora é quem teria tantas coisas para me ensinar!
De fato, se não estivéssemos perdendo tanto tempo com essas expressões tão pouco simpáticas...
Bom, é aqui. A senhora não estranhe. Antes de sair eu vou lhe dar um sorriso.
...
(Sorriso)
...
É, a juventude costuma ser irônica... mas não me leve tão a mal, a senhora já me conhece um pouquinho agora.
É só que meu sorriso acabou de se lembrar que a cor desses assentos preferenciais ainda não é a única diferença entre nós duas.
E aí ele sorriu. Involuntariamente.
Bom. Fica com Deus, tá?! – (última surpresa, eu prometo).
Tenha um bom dia.

5 comentários:

Junior Freitas disse...

Ei Pati... deselegância por deselegância, sendo eu, ou melhor, devendo ser eu um cavalheiro, cometi uma maior em não deixar nem um comentário aqui, e sempre leio o que aqui está escrito. Apesar, de como já disse, ser um de seus mais ardorosos fãs, creia nisso, vou tratar de responder o que você escreveu para mim.
Você é de fato uma gracinha. Só você para ler o que escrevo mesmo. E periodicamente... só por isso, vou me esforçar mais. Mas não se espante com meu ritmo e o seu ritmo de postagem. Você escreve coisas lindas, arte. Eu berro umas palavras sem sentido contra tudo ou todos. Quando não grito, fico chorando uma poesia barata.
Apesar de que passo a perceber que meus poucos leitores se identificam mais com as palavras berradas. Acho que o eu sensível não pega muito.
Muito obrigado pelas visitas. Saiba que são recíprocas. E mais obrigado ainda pelo link adicionado. Saiba também que sou um intenso divulgador de seu blog.
Sobre esse texto aqui, mais uma vez, o que dizer? É arte, poesia pura. Português impecável, fina percepção das atitudes, das frases não ditas, das coisas pequenas e importantes dos momentos. Belo. Mas eu, eu teria dado o lugar para a velhinha. Claro, que depois teria dito: "Aproveite! E melhore essa cara de que comeu e não gostou, porque não vou ficar em pé sofrendo, enquanto você sentada faz essa cara de incesto". Mas aí, cada a poesia? Só você, para adocicar um pouco minhas visitas á internet brindando até essa senhora drama, com fina e rara beleza.

Anônimo disse...

Parece que enquanto eu lia o júnior resolveu escrever aqui...
Entre expressões de dor, de raiva, de medo, de uma luta travada conosco mesmo e com todos que simplesmente querem seu direito de se sentar no assento cinza existe sempre uma surpresa, que nunca será a última, mas a primeira de uma série que virão depois dela: o irônico sorriso da juventude, simples, se hora, sem pressa, sem idade. Ele espanta todos os medos!

André Luiz disse...

Gostei. Junior me indicou você. Propaganda é a alma do negócio. =)

Anônimo disse...

E então, grafite? Vamos contar nossos segredos em conjunto? hehehe, adorei isso!

Olha só, estou sentindo sua falta no nosso blog de RI.. o Mundo em Questão... sei q além de coisas bonitas, vc tb gosta de escrever sobre RI... hehehe, entre lá... e não é divulgação barata no blog alheio... mundoemquestao.blogspot.com

Bjinhos

Anônimo disse...

quem diria,não é mesmo?
vc não deixa nunca de me surpreender...obrigada pela surpresa mais recente, obrigada pelo lirismo dessa hora tardia...