sexta-feira, 28 de setembro de 2007

À demain...

Decidi que hoje não!
Hoje o papel em branco não será manchado pela tinta (quiçá restará enrugado pela umidade que insiste em escorrer de meus olhos, tendo a exclusividade de contrariar a inércia cotidiana).
Hoje estou cansada para desavenças e desamores, cética sobre tudo, descrente frente todos.
Hoje recuso-me a gastar palavras e árvores e sono.
Coloque-se um aviso à porta: hoje não estou.
Coloque-se uma ordem à mão: hoje não escrevo.
Coloque-se um alivio à cama: hoje dormirás.

domingo, 23 de setembro de 2007

Sentido único

Não há sentido em desesperar,
Em deixar que pontadas e calafrios tomem conta de meu corpo.
Não há sentido em agir,
Para que insistir no inevitável?
Que tudo corra como deve ser,
E que minh'alma se liberte de você
Do mesmo modo com que as palavras
agora se desprendem de minhas mãos.

Não há sentido no grito, no choro, no espanto.
As incertezas tornam-se tão certas
No momento em que se percebe:
Atrás de casa suspiro, de cada dúvida,
Havia sempre uma mesma resposta.

Não há sentido em deprimir-se.
Se tua presença hoje me sufoca,
É tua própria contradição a me fazer lembrar:
A vida talvez surja da imobilidade,
E o novo substitui tudo o que hoje é não-amor.

sábado, 15 de setembro de 2007

Pedido

Concedam-me, ainda que apenas por hoje, a permissão para a alegria ordinária!
Invade-me um desejo contínuo de provar o gosto de seus prazeres,
Instiga-me a possibilidade de faltar aos vícios de minha lucidez.
Confesso, por meio de versos desconexos, que há tempos convivo sob o conflito de minhas convicções e, deliberadamente, desafio-me aos atos ilícitos.
Flerto com alternativas que, não de hoje, se me apresentam e cuja recusa acreditei por longo tempo fortalecer-me a virtude.
Não mais creio, por hoje.
Pelo momento, desejo apenas provar da insensatez.
Por um instante somente, concedam-me o hiato dos sentimentos, o intervalo dos princípios.
Desejo a alegria dos bobos, a autenticidade das crianças, a leveza dos bêbados.
Desejo flutuar em nuvens de ausência e quando, lá de cima, afigurar-se o auge da contradição de meus porquês, desejo apenas rir do formato quadrado daquilo a que se chama existência.
Contentem-se com o fato de que, por hoje, abdicarei dos julgamentos.
Por hoje, serão entregues corpo e sentidos para a emolduração da felicidade.
E assim, rirão todos de minha insanidade,
Saciar-se-ão de minha descompostura,
Aliviar-se-ão por minha corruptibilidade.
Enquanto ausenta-se minha razão, desfrutarão todos de incontestado desregramento.
Por meio de meu delírio, peço permissão para que justifiquem-se vossas fraquezas humanas e mantenho-me subserviente às mais caridosas intenções.
Renuncio ao contraponto e, por ora, dormiremos em paz.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Desacertos da temporalidade

- Então, você também escreve?!

A pergunta fez-se incômoda.
Acaso os devaneios de seu interior, transcritos em traços de grafite, tornavam-na uma escritora?
Interessaria-se aquele sujeito pela expressão de transtornos e dúvidas que talvez não lhe dissessem respeito?
Fato, era. Algumas dezenas de poemas, duas ou três crônicas, imaginava um conto.
Enxergava a poética da vida através de pensamentos decassílabos e rimados.

- Sim, escrevo.
(As palavras saíram-lhe da boca, tal como nos momentos em que não podia controlar a mão, insistente em riscar o papel).

- Interessante! E sobre o que escreve?
(Não resolvera o problema).

A natureza, os anjos, o mar.
Todos os grandes escritores pareciam versar sobre algo que lhes tinha sentido.
Quase heresia, escrevia justamente sobre a falta de sentido a perturbar-lhe ininterruptamente.
Como o olho chora e a boca grita, escrevia na intermitência das explosões de sua alma, como alternativa única.

- Não, não escrevo.
(Aliviou-se com a correção, embora ainda não certa sobre o grau de mentira que acarreta a supressão da verdade).

- Mas ora, escreve ou não escreve?

Não havia saída.
O pretérito calaria para sempre sua mão.
O presente exigiria explicações.
O futuro pertencia aos sujeitos indeterminados.
A inexistência de uma forma verbal acaso a eximiria de uma resposta?

(Grunhiu um vocábulo fresco):
- Escreviariarei.

Descobriu, no exato instante, os desacertos da temporalidade.
Escancarou, em sua ambigüidade, a incerteza característica dos versos.
Imaginou-se ininteligível e sorriu:
Compreendeu-se inexata, fez-se poetisa.